Se o tentasse fazer com os meus gémeos, tendões de Aquiles ou...glúteos nenhuma letra sairia. Os dedos das mãos são das poucas partes do meu corpo que não se queixam.
Há uns meses desafiaram-me para participar numa ultramaratona em Serpa. Só o prefixo "ultra" seria suficiente para esquecer tamanha loucura. 160 km!!!!
Lá me inscrevi juntamente com dois companheiros do pedal, Mário Romão e Jorge Menau.
Os dias foram passando e a data chegando... e o treino esquecido foi ficando!!! Ponderei mesmo em participar somente na maratona de 80 km, mas não seria a mesma coisa.
14 de Abril 2012. Depois de uma noite mal dormida, com companhia pluviosa e embalado pelo vento que abanava literalmente o meu T0 "carrinha", alvorámos às 6 da manhã!!!. Cobertos por um tecto cinzento carregado, eu o Romão o Menau e mais 397 loucos dirigimo-nos até à partida.
8h00.
Partida, lagarta, fugida!!!! E não é que parecia mesmo que fugiam!!! Passavam, ultrapassavam, como se do temporal que se aproximava conseguissem escapar. LOUCOS!!! Eles que sigam para a SRP160 que eu fico no meu passeio pelo Alentejo.
Depois de uma retemperadora bifana e refrescante bebida isotónica de marca Sagres lá seguimos para a segunda metade do ultrapasseio pelo Alentejo. Com o estômago e alma aquecidos mas o corpo arrefecido paguei caro a espera desta bifana. Quebrei, abrandei e sozinho fiquei. Os meus companheiros do pedal optaram por fazer a SRP160 e seguiram...
Com a terra de côr férrea, encostas de barro cinzento e esqueletos de edifícios fantasmagóricos encontrei-me só nas minas de S. Domingos. O vento e o meu joelho esquerdo fizeram parceria e tentaram levar-me de regresso. Ignorei-os. Pensei cantar para a bicharada não afugentar. Lebres, que sarcasticamente me ultrapassavam. Os cães já não ladravam, provavelmente cansados por o terem feito aos 300 que já tinham passado. Rebanhos... muitos rebanhos.
Guardo na memória um deles. Não pela cor da lã das ovelhas, mas pelas palavras atiradas com a força à cajadada do seu guardador:
- Atão!!! É o último?
... (silêncio)
Por breves instantes o rebanho largou o repasto e olhou-me atento...
- Nada disso. Já estou na 2.ª volta.
- Ah bom!!!! Respondeu mais descansado.
Desejei que a ovelha Xoné saltasse do seu rebanho e lhe arrancasse as suíças pêlo a pêlo. LÃZUDO!!!!!
Talvez por isso tenha sido "chicoteado" pela tromba de água mais forte de todo o dia.
17h00. Km 130.
Furo. A guerreira cede primeiro. Troco de câmara de ar e... surpresa!!!!! Também estava furada. Engano meu ao preparar a mochila. Derrotado, julgando ser o último, restava-me aguardar pelo humilhante carro vassoura para me recolher.
Sorte a minha o lãzudo do pastor estar errado. Afinal não era o último. Ao longe surgia um ciclista em forma de câmara de ar!!! Lamento, mas eu só o via assim!! Redondo, cinzento e cheio de vontade de me ajudar!! Qualquer coisa servia para esquecer a humilhante imagem de chegar a Serpa na "garupa" de uma pick up denominada carro vassoura.
O bondoso rapaz, do Porto, lá me cedeu a sua câmara suplente e ao partir atirou-me com a informação de que o carro vassoura vinha mesmo atrás dele...
Chegada.
Ontem entendi o verdadeiro significado do ditado "os últimos serão os primeiros".
Entendi porque senti o mesmo calor que Vítor Gamito sentiu 6 horas antes ao cortar a meta em primeiro lugar.
Aplausos, palavras de ânimo reconfortantes. Alguns amigos e muitos desconhecidos.
Fantástico este meu passeio pelo Alentejo. Tenho dúvidas que quem fez a SRP160 o tenha apreciado tanto como eu.
Cansado e dorido regressei a casa feliz por o ter conseguido."
RS.
Os meus parabéns, Rui! Pelo relato fantástico e por essa persistência tão característica do ciclista que acompanha um excelente estado de humor.
ResponderEliminarObrigado pela partilha da experiência.
Um abraço
João Calado
Cruzamo-nos no caminho... também sendo dos "ultimos", a verdade é uma, dá para apreciar a ultra de outra forma... :)
ResponderEliminarCaro amigo anónimo, caso tenha sido o amigo que me forneceu a camara de ar, agradeço-lhe mais uma vez a sua amabilidade!!! Bem haja o amigo e este espírito de camaradagem que ainda ha no BTT. Abraç. Rui Silva.
EliminarOs últimos também são os primeiros. Revejo-me nessa filosofia do passeio pelo Alentejo profundo e também eu o fiz. Um passeio que durou 11h20, cheio de boas e más (dores) sensações. Não tive carro vassoura a reoer-me os tornozelos, mas não deixei de ter tempo para ajudar a remendar um furo e deixar uma camara de ar a um outro companheiro em necessidades. É bom ser dos últimos e viver bom btt! Parabéns!
ResponderEliminarNão há nada como ter passado também pelo SRP160 para entender o quão real é o relato! Mais do que uma ultra-maratona é uma aventura inesquecivel!
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